quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Mais que acaso


Não quero mais deixar sonhos à beira do caminho ou deixá-los ir e vê-los em alto-mar, bem longe de mim.

Quando nos esquecemos de sonhar acabamos nos esquecendo de viver. E deixar de viver é um preço alto demais para se levar consigo.

Parar no meio do caminho? Voltar? Não é possível. Deve-se caminhar sempre, apesar dos percalços.

A vida não pode ser um fardo, deve antes ser ventura e possibilidades em meio aos dias cinzas e frios (logo vem o sol, logo a primavera vem, logo as flores nascem e murcham...). Tudo ao seu tempo, portanto.

Mas esperar demais pode ser outro grande erro. Às vezes é melhor arriscar. Singrar, desbravar, seguir...

O destino depende de nossas escolhas, não do acaso. Nossa vida é mais do que folhas secas ao vento.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Lembranças de Cássia - continuação do Capítulo III


Acordou com sua mãe sacudindo-a impaciente.
– O que você está fazendo a uma hora dessas fora do seu quarto, Cássia? Você não sabe que tem que ir para a cama cedo?
– Desculpe, mamãe...
– Desculpo coisa nenhuma. Não sei quem você puxou para ser assim tao imbecil e desobediente. Até parece que seu pai e eu nunca lhe demos educação.
Cássia abaixou a cabeça e chorou em silêncio, levantando-se lentamente.
– Já para o seu quarto, garota! Tive um dia maravilhoso e não será você quem irá estragar a minha alegria. Já para o quarto!
Cássia apressou-se em desaparecer das vistas da sua mãe, como um cãozinho de rua escorraçado.
Entrou no quarto e se deitou de bruços na cama, soluçando desolada. Era um estorvo, um empecilho à felicidade de seus pais. Uma coisa sem utilidade nenhuma. Além de tudo, iria mudar-se para um apartamento do outro lado da cidade e nunca mais veria seus amigos.
Sentia-se sozinha e abandonada. Não entendia por que seus pais não a amavam como deveriam. Nunca recebera deles um carinho, uma palavra amável, um gesto de afeição... Só se lembravam dela quando queriam agredi-la ou cobrá-la de alguma tarefa ou obrigação não realizada. Era opressor viver assim. Por que não podia ter uma família de verdade como as outras crianças que conhecia?
Era como se Cássia fosse uma invasora, uma estranha naquele lar hostil onde não havia pedido para nascer. Ela não escolhera aquela família. Ou será que escolhera e não se lembrava mais?
Se ao menos fosse adulta, talvez encontrasse respostas para tudo aquilo. Os adultos pareciam saber de tudo!
Mas não... Era apenas uma criança de nove anos de idade...
Não queria mais incomodar a vida de seus pais. Fugiria e eles nunca mais iriam vê-la. Levantou-se determinada, pegou sua mochila do colégio, tirou os livros e os cadernos, e pôs algumas roupas dentro. Iria para bem longe! Faria como as crianças que ela via na televisão: viveria nas ruas, dormiria debaixo das marquises e pediria esmolas para não morrer de fome. Não deveria ser tão ruim assim.
Saiu do quarto e espiou na sala: não havia ninguém. Tudo estava em silêncio. Decerto já deveriam estar dormindo.
Chegou até a porta que dava para a rua e a abriu. A noite estava belíssima: a lua cheia iluminava toda a rua e as estrelas piscavam alegremente, como se convidassem Cássia a sair.
Cássia sorriu para si mesma e saiu de casa. Andava sem direção, confiante por saber que em breve estaria bem longe e nunca mais a veriam. Após meia hora caminhando descobriu que estava perdida: não conhecia aquela rua escura e deserta em que se encontrava. Sentiu medo. E se aparecesse algum homem desconhecido e lhe fizesse mal? Embora fosse apenas uma criança, sabia bem que o mundo estava repleto de pessoas más.
Cachorros latiam ao longe. Um carro de polícia passou a toda velocidade com a sirene tocando alto. Um bêbado passou por Cássia cantarolando uma música incompreensível. Fazia um pouco de frio e Cássia desesperou-se ao lembrar que não havia colocado um casaco na mochila.
– Que frio! – disse a menina, cruzando os braços e se encolhendo toda.
Um carro branco passou por ela e parou mais à frente. Deu marcha à ré e parou perto da menina. Havia um casal de jovens dentro.
– Ei, menina! - disse o rapaz ao volante. – O que você está fazendo sozinha na rua a uma hora dessas?
– Estou indo embora – respondeu Cássia calmamente. Tinha os olhos ingênuos e um sorriso leve nos lábios.
–Indo embora pra onde? – perguntou a moça ao lado do seu namorado.
– Indo embora de casa. Papai e mamãe vão se mudar e eu não quero ir com eles.
– Por quê? – insistiu a moça.
Cássia abaixou a cabeça e não respondeu. Como explicar que não queria se afastar de seus amigos? Pior: como explicar que seus pais não a amavam?
– Quer uma carona para ir embora, menina? ­– ofereceu o rapaz sorrindo.
– Quero.
Cássia não sabia para onde iria, mas já que lhe ofereciam carona era melhor aproveitar. Além do mais, aquele casal era muito simpático. Entrou no carro e se sentou no bando de trás. A moça virou-se para trás e contemplou Cássia por alguns instantes.
– Então você quer ir embora de casa?
– Quero.
– E para onde você vai?
– Ainda não sei.
– Qual é o seu nome?
– Cássia.
– Muito prazer, Cássia. Eu me chamo Mônica. E este é o Ricardo, meu amigo.
Ricardo sorriu e corrigiu:
– Não sou amigo dela, Cássia. Ela está mentindo. Sou o namorado dela.
– Ricardo! Não seja bobo!
– Não estou sendo bobo, Mônica! Estou apenas falando a verdade para a menina.
– Ela é apenas uma criança. Que diferença isso faz pra ela? – Mônica fuzilou o namorado com os olhos.
– Pra ela não sei, mas pra mim faz bastante diferença, querida.
– Você é terrível, Ricardo! – Mônica riu. Voltou-se novamente para trás e já começava a dizer: – Não ligue para o Ricardo, Cássia. Ele é um bo... – Parou ao ver que a menina dormia deitada no banco. – Veja, Ricardo! Ela está dormindo.
– E o que você queria? Crianças dormem cedo, e já passa da meia-noite.
– E pra onde vamos levá-la?
– Pra onde você acha? Vamos levá-la ao lugar certo.
Pela manhã, Cássia acordou em um lugar desconhecido. Era o Juizado de Menores. Não demorou muito para que conseguissem obter dela as informações necessárias para descobrir onde morava e quem eram os seus pais.
Uma hora depois, lá estava Cássia diante de seus pais. Estes a olhavam friamente. Cássia sentiu medo. Na verdade, ela sempre sentia medo na presença deles.
Cássia, timidamente, esboçou um sorriso. Mas o rosto de seus pais permanecia impassível. A menina abaixou a cabeça.
– Vamos embora, Cássia – ordenou Sandra como se estivesse proferindo a sentença de morte a um assassino sanguinário. Levantou-se, seguida por seu esposo, encaminhando-se para a porta. Cássia seguiu-os como um animalzinho obediente.
Cássia nunca se esquecera de quando voltara para a casa de seus pais. Fora a maior surra que levara na vida. Ainda hoje podia lembrar-se perfeitamente dos seus gritos de dor e das suas lágrimas. Naquele dia Cássia tivera a certeza de que seus pais nunca a amaram e nunca viriam a amá-la um dia.
Uma semana depois, Cássia e seus pais finalmente se mudaram para o apartamento.
Era terrível aquela sensação de prisão que Cássia sentia naquele lugar. Sua vontade era sumir dali para sempre. Mas sabia que nunca conseguiria fugir. A primeira tentativa fora trágica e deixara marcas indeléveis em sua alma infantil e já atormentada.
Sua maior diversão naquele apartamento era ficar debruçada à janela do seu quarto vendo os carros e as pessoas indo de um lado para o outro lá embaixo. Era maravilhosa a sensação de estar bem distante de tudo e poder observar tudo como se fosse a dona do mundo.
Às vezes se imaginava voando pelo céu, como os pássaros. Era a liberdade que jamais poderia ter. Ser livre... Voar... Viver de verdade... Ser alguém... Ser ao menos amada...


Cássia assustou-se quando, ainda à janela, deu-se conta de que tinha vinte e um anos e não mais nove. Já havia se passado tanto tempo e se sentia a mesma menina de doze anos atrás, quando era uma prisioneira do seu próprio mundo e não sabia ainda quem era.
– Não sou ninguém... Não sou nada... ­– balbuciou Cássia para si mesma.
Essa afirmação já poderia ser o suficiente para que ela finalmente se decidisse a pular e dar um fim àquela angústia dolorosa.
Sim, ela pularia. Mas... Queria tanto rever seus amigos pela última vez... Revê-los e dizer o quanto os amava e o quanto era especiais em sua vida.
Revê-los... Sim, revê-los como naquele domingo de setembro – uma primavera como nunca mais viria a ter novamente! – quando, após cinco anos de separação, encontrara novamente Raquel, Lucas, Carla e Marcos...
Fora um dos dias mais importantes da sua vida, e Cássia se lembrava como se fosse ontem, e não há sete anos...

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Lembranças de Cássia (Capítulo III)


III

– Pare de gritar, Cássia! Você está me irritando!
Sandra aproximou-se de sua filha e a segurou pelo braço. Cássia continuava a chorar desesperada à medida que as trovoadas tornavam-se cada vez mais constantes.
– Eu já disse, Cássia! – continuou Sandra a reprimir a filha. – Pare com esse escândalo idiota. É só uma chuva, droga! Não é o fim do mundo!
– Estou com medo, mamãe!
– Medo não sei de quê! Uma menina com nove anos de idade e com medo de chuva! Só me faltava essa agora!
Sandra empurrou a menina, fazendo-a sentar-se no sofá. Afastou-se e se encaminhou para a cozinha. Cássia sentiu-se ameaçada pela escuridão assustadora e pelas trovoadas que não se calavam. Tremia de medo e já nem mais ousava gritar.
Dois minutos depois, sua mãe retornou com uma vela acesa sobre um pires azul. Cássia abriu a boca assombrada, sem emitir som algum. Por trás da chama, o rosto de sua mãe parecia deformado; a sua sombra na parede era como a silhueta de um monstro agressivo e prestes a atacar.
Cássia deu um grito desesperado e pôs as mãos no rosto. Não queria mais ver nada.
Sandra deu-lhe algumas palmadas. Nunca fora uma mãe carinhosa. Não era da sua natureza ser mãe. Na verdade, nunca quisera ter filho algum, mas seu esposo Eduardo sempre sonhara em ter um filho e, para não o contrariar, decidira-se por finalmente engravidar.
O que Eduardo não esperava era o fato de ter nascido uma menina. O seu sonho era ter um menino para levá-lo aos jogos de futebol e o ensinar várias coisas que só os meninos sabiam fazer.
Apesar da sua insistência, Sandra recusara-se a engravidar novamente. Uma filha já era o suficiente. Um casal de filhos? Nem pensar!
Eduardo teve que se acostumar com a idéia de ter apenas uma filha. Nunca teria um filho. Nunca.
Ignorante a esses fatos, Cássia crescera dentro de um ambiente pouco acolhedor, indiferente à sua presença. Era como ela fosse um estorvo, um bibelô jogado num canto da sala, um velho animal de estimação que era alimentado regularmente.
Como seria bom se a sua mãe, de vez em quando , pudesse abraçá-la com carinho, como faziam as mães de seus amigos!... Ela só sabia dirigir-se à Cássia para repreendê-la de alguma coisa sem importância.
“Arrume seu quarto, Cássia! Não seja irresponsável e relaxada!”
“Não coma com os cotovelos sobre a mesa!”
“Não fale perto dos adultos!”
“Não corra pela casa!”
“Pare de chorar! Você não é mais uma criancinha!”
tudo isso deixava a menina muito triste. Se ao menos o pai lhe desse atenção...
Mas ele chegava tarde do trabalho e só pensava em ficar diante da televisão assistindo ao telejornal e aos jogos de futebol. Era sempre assim.
Como a sua mãe também trabalhava – os adultos só pensavam em trabalho! –, Cássia ficava durante todo o dia com uma babá, a Elaine, que a levava ao colégio, preparava suas refeições e lhe fazia companhia. Era alta, branca, cabelos ruivos e curtos, muito bonita. Passava o dia inteiro telefonando para as suas amigas e para o seu namorado. Quando não, só penava em ver televisão. Nunca dava atenção à Cássia, que tentava agradá-la de todas as formas oferecendo-lhe algum doce ou fruta, conversando sobre algum programa de televisão ou propondo um passeio ao shopping. Elaine, no entanto, ignorava-a por completo. Era uma jovem de dezoito anos. O que suas amigas e seu namorado diriam se a vissem passeando com uma criança estúpida?
Por isso, Cássia passava a tarde inteira em seu quarto sem nada para fazer, tão logo chegasse do colégio, tomasse banho e almoçasse. Sua maior diversão era quando brincava de boneca ou quando seus amiguinhos iam vê-la.
Sua maior tristeza até então fora o dia em que seus pais, certa noite, chegaram em casa felizes e comemorando: eles haviam comprado um apartamento e não precisariam mais pagar aluguel. Escondida atrás da porta, Cássia ouvia tudo e um parto no coração machucou-a fundo: iria para longe dos seus amigos. Iria para longe de Marcos. Era terrível!
Eduardo estourou um champanhe e soltava urros de alegria, enquanto Sandra aplaudia efusivamente.
Ouvindo a conversa dos dois, Cássia descobriu que o apartamento ficava do outro lado da cidade. Seus pais (e muito menos Elaine) nunca a levariam para visitar seus amigos. Estava perdida.
Uma idéia maravilhosa veio-lhe à mente: fugiria! Sim, fugiria! E seus pais nunca iriam vê-la novamente.
Com esse pensamento adormeceu no chão do corredor, encostada na parede próxima à porta da sala.
(continua cap. III)

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Um dia...


Um dia ainda resolverei a minha vida.

Organizarei papéis, discos, livros e anotações pessoais. Pagarei todas as minhas contas, todos os meus cartões de crédito, terei uma vida estável, poderei descansar mais, trabalhar menos, ter mais tempo para mim e para as pessoas que eu amo.

Um dia farei a barba, irei ao dentista, farei um check up no meu médico particular (quando eu tiver um), comerei menos comidas que fazem mal à saúde, aprenderei a comer legumes e verduras.

Um dia me preocuparei menos com problemas banais, acordarei cedo todos os dias e verei o sol nascer, comprarei uma fazenda para respirar mais ar puro aos fins de semana.

Um dia ainda farei tudo isso. Quem sabe amanhã ou outro dia... Não sei...

Sei que será um dia, mas ainda não sei quando...

Depois pensarei nisso.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Lembranças de Cássia - Capítulo II


II

Cássia não se lembrava muito bem de quando se dera conta de que estava viva.
Talvez tivesse sido aos sete anos de idade, na festa do seu aniversário. Era uma tarde belíssima, que Cássia nunca mais iria esquecer. A casa estava toda colorida com todos aqueles balões, com todas aquelas pessoas (muitas delas Cássia nunca vira antes), com todas as crianças da sua rua que não paravam de correr, entrando e saindo frenéticas, enlouquecidas.
Olhou-se no espelho que se encontrava num canto da sala: usava fitas vermelhas nos cabelos e, no corpo, um vestidinho azul com florezinhas brancas. Parecia-se muito com as suas bonecas queridas.
Sorriu para si mesma, satisfeita com o que via.
– Cássia! Cássia!
A menina teve um sobressalto e se virou. Deparou-se com Raquel, sua amiguinha, que corria ao seu encontro esbaforida.
– Procurei você por toda parte! Vamos lá pra fora brincar!
– Vamos!
Deram-se as mãos e saíram pela porta da sala, encontrando-se com outras crianças que brincavam com uma bola de borracha e gritavam num dialeto que só elas poderiam compreender. Adultos não entendiam aquela linguagem exótica e infantil.
Cássia nunca poderia se esquecer da imagem de sua amiga Raquel aos sete anos de idade: era loura, e seus cabelos lisos e compridos eram admirados e invejados por todas as crianças. Tinha um rosto angelical; seus enormes olhos verdes despertavam a atenção de quem a conhecia no bairro e o orgulho de seus pais. Como não bastassem todas as suas qualidades físicas, Raquel tinha um cérebro privilegiado para a sua idade: sabia ler e escrever muito bem, fazia contas de matemática com destreza não falava errado, como acontecia normalmente com crianças da sua idade. Todos comentavam que ali se encontrava uma criança superdotada que teria um grande futuro.
Raquel parecia ser a líder daquele grupinho de crianças: era ela quem escolhia, inventava e coordenava as brincadeiras diárias com autoridade. Falava firme com se fosse uma adulta.
Cássia alegrou-se por ver Lucas e Carla no meio de toda aquela bagunça lúdica. Eram eles seus grandes amiguinhos de brincadeiras diárias naquela rua em que morava desde quando nascera.
Lucas sempre lhe parecera uma criança triste, distante. Mesmo quando brincava descontraído, Cássia sentia-o diferente, como se fosse um estrangeiro recém-chegado a um lugar em que nunca estivera antes. Além de tudo isso, sofria com algumas crianças perversas que e aproveitavam de sua ingenuidade: roubavam-lhe seu tênis e seus brinquedos novos, trocando por outros já bem usados. Sem falar nos inúmeros apelidos que lhe inventavam, sempre relacionados à sua aparência: era muito franzino e branco, além de ter os cabelos ruivos e lisos até aos ombros. Por isso ganhava apelidos como menininha, palito de fósforo, Emília, tomatinho, ratinho branco, entre outros. Por ser uma criança muito sensível, Lucas sempre chorava, o que aumentava ainda mais o escárnio das outras crianças.
Já Carla era uma criança extrovertida e hiperativa. Estava sempre sorrindo e brincando, parecia nunca se cansar da vida que se lhe abria as portas com prazer. Cada descoberta que fazia deixava-a extasiada, como na primeira vez em que fora à praia com seus pais. Era tão perfeita aquela sensação de infinito que só o mar tinha! O céu azul e ensolarado parecia ser uma continuação da praia. Carla, então, pensava nos anjos: eles deveriam estar no céu divertindo-se muito, assim como toda aquela gente na praia que parecia ser muito feliz.
Carla, ao contrário de Lucas, nunca se importava com os apelidos que aquelas mesmas crianças perversas também lhe colocavam apenas por ser negra: carvãozinho, sombra, manchinha negra...
Era engraçado para Cássia pensar que já amava seus amigos desde aquela época, desde aquela primeira vez em que se dera conta de que estava viva.
Mas faltava alguém. No meio da balburdia das crianças, Cássia procurava um menino. Onde estaria Marcos? Quando já pensava em perguntar à Raquel (que sempre sabia de todas as coisas) onde Marcos se encontrava, eis que ele lhe apareceu como numa visão, sorrindo no meio daquelas crianças com a bola nas mãos. Ele era mais alto do que as outras crianças, apesar de ter sete anos como a maioria delas. Era um menino encantador: todos já comentavam que seria um belo rapaz quando crescesse.
Podia parecer estranho, mas Cássia o amava! Amava-o de uma forma diferente ao amor que sentia por Raquel, Lucas e Carla. Era ainda muito nova para saber o que era aquele amor que sentia por Marcos, mas sabia que era lhe era muito especial. E sabia que ele também sentia o mesmo por Cássia – aquele amor, aquele carinho inocente que só as crianças poderiam sentir.
Marcos viu sua amiga Cássia a certa distância, sorriu-lhe e acenou com a mão. Cássia ficou extremamente feliz e correu ao seu encontro. Ele jogou a bola para outra criança e abriu os braços. Abraçaram-se e ficaram por algum tempo assim, rindo alto. Como sempre fazia, Marcos levantou-a pela cintura e começou a girar enquanto Cássia ria, gritava e pedia ao seu amigo que parasse.
Quando finalmente parou e a colocou novamente no chão, Cássia sentiu tudo à sua volta girar, girar e girar. Era incrível aquela sensação de não ter controle sobre o seu próprio corpo por alguns segundos, parecendo levitar.
– Onde você estava, Marcos? – perguntou Cássia.
– Cheguei agora.
– Pensei que você não viria!
Marcos apenas riu e tirou um pedaço de papel do bolso de sua bermuda. Entregou à sua amiga e disse:
– Fiz pra você!
Era um cartão feito a mão, escrito “Feliz Aniversário!” com letra infantil e irregular, alem de haver um desenho de um coração (bem, pelo menos se parecia um coração) com o nome dos dois meninos dentro.
Cássia, feliz, beijou-o no rosto.
– Vamos ver as estrelas, Cássia? – perguntou Marcos ansioso.
– Vamos sim!
Os dois amigos deram-se as mãos e, indiferentes à gritaria das crianças que brincavam na calçada, foram correndo até à praça. Havia acabado de escurecer e as primeiras estrelas já piscavam no céu. Deitaram-se no gramado e lá ficaram com as mãos entrelaçadas por detrás da cabeça, admirando aquele céu perfeito. Cássia lembrava-se bem: fora Marcos quem lhe despertara aquela paixão pelas estrelas.
Havia uma estrela no céu que piscava mais que todas as outras; era enorme.
– Veja, Cássia! Uma estrela cadente!
– Ela é tao bonita! Por que ela é assim?
– Mamãe me disse que a gente pode pedir qualquer coisa, que Deus ouve a gente! Essa estrela pertence aos nossos anjos da guarda.
– É mesmo?
– É sim! Vamos fazer um pedido. Feche os olhos e peça qualquer coisa!
Cássia obedeceu e fez o seu pedido no pensamento: pediu a Deus que sempre deixasse Marcos ao seu lado. Sim, queria Marcos para sempre!
– Não fale pra ninguém o que você pediu. Se alguém souber, Deus não vai atender o seu pedido.
– Está bem, Marcos.
Seguraram a mão um do outro e continuaram admirando as estrelas em silêncio.


Cássia, na janela do seu quarto, ao pensar naquele dia inesquecível, sentiu uma enorme tristeza a oprimir o seu coração. Por que tudo tinha que ter um fim?
Como pôde acreditar numa estrela cadente ridícula que pertencia aos anjos e que Deus poderia atender a qualquer pedido que fizessem a essa mesma estrela? Era ridículo, ela sabia bem agora. Marcos estava morto e Deus nada fizera para impedir que isso acontecesse.
Sentiu novamente vontade de chorar e pediu a Deus que a fizesse ter novamente sete anos de idade.
Ouviu as trovoadas e teve certeza de que Deus lhe dizia não. Não! Não! Não!
Estava completamente sozinha. Sim, sozinha e abandonada. Olhou para o céu e, em vez das estrelas da sua infância, deparou-se com nuvens pesadas e cinzentas.
A chuva começou a cair, primeiro leve, depois cada vez mais forte, pesada, ensurdecedora. Trovoadas se multiplicavam.
Aos poucos escurecia. Cássia sentia-se como naquela noite (tão distante!) em que a luz acabara e a fizera chorar de medo...

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Lembranças de Cássia - Capítulo I


I

De onde ela estava tudo parecia muito menor.
Sim, era uma sensação única e inexplicável sentir-se maior que o mundo. Era como se ela fosse, naquele instante, o próprio Deus.
E, por um segundo de lucidez, pôde lembrar quem era de fato: era apenas Cássia, debruçada à janela do seu apartamento. Uma anônima.
Sentiu-se envergonhada. E se Deus estivesse rindo dela, da sua tola pretensão, do seu desejo de ser eterna, de ser alguém que na verdade nunca poderia ser?
Mas, na verdade, o que ela queria ser?
Cássia não sabia ao certo. Mas de uma coisa ela tinha absoluta certeza: não queria ser quem era, não queria carregar aquele peso insuportável que era a sua vida.
A sua vida medíocre.
Já estava há duas horas ali sem se decidir. E ela sabia bem o que deveria fazer. Seria simples: precisava apenas erguer-se na janela e se jogar. Seria muito simples. Eram sete andares. Não haveria erro. Não ficaria paralítica ou coisa parecida. Seria uma morte instantânea.
Mas por que se demorava tanto então? Já não estava decidida? Não havia chegado àquela conclusão após noites e noites em claro, numa profunda reflexão?
“Pule, vamos! Acabe logo com isso!”, pensava Cássia, instigando-se determinada. “Você não sentirá nada”.
Mas será que não sentiria mesmo? Como seria o momento da queda? E se se arrependesse segundos após a queda? Deus lhe daria a chance de voltar atrás e desistir daquela loucura?
Cássia tinha certeza de que não. Daí a sua angústia desesperada.
E se descobrisse que poderia voar como aquele pardal que acabara de pousar em sua janela?
Não, não. Ela sabia muito bem: pessoas não voavam. E ela já não era uma criança inocente a ponto de acreditar em tal possibilidade.
Fechou os olhos e, por um momento, tentou não pensarem nada. Mas era impossível. Era tolice fingir que aquilo não era real. O mundo era real. As pessoas e os carros em miniatura que passavam de um lado para o outro eram bem reais lá embaixo. Os pardais também pareciam reais.
Talvez só ela não fosse real.
Mas... Não tinha ela sentimentos? Não tinha ela o seu quarto, o seu mundo, os seus pais (apesar de pouco vê-los), os seus amigos verdadeiros, o seu passado, a sua vida?...
Não tinha ela Marcos? Não, não tinha mais... Ele estava morto. Morto. E tão jovem, meu Deus!... Tão jovem...
Cássia estava viva, mas era como se não estivesse. Sentia um vazio devastador e sombrio dentro de si. Seus sonhos estavam mortos (ou pelo menos adormecidos), sua vida deixara de fazer sentido havia muito tempo.
Abriu os olhos num sobressalto. Alguém estava falando alguma coisa por detrás de si. Mas não estava sozinha, como sempre, naquele maldito apartamento?
Virou-se, certa de que encontraria alguém. Marcos, talvez. (Marcos estava morto, ela havia se esquecido mais uma vez.)
Não havia ninguém no quarto.
Suspirou aliviada e lembrou-se: era apenas o disco dos Smashing Pumpkins que continuava tocando e ela nem se dera conta. Seus discos eram tão familiares que às vezes lhe pareciam velhos amigos que vinham fazer-lhe uma visita e conversar sobre a vida.
Sobre a vida...
(Raquel estava se prostituindo. Lucas internara-se novamente numa clínica de recuperação para dependentes químicos. Carla fugira de casa. Antônio suicidar-se.)
– Oh, meu Deus! – desesperou-se Cássia. – estou tao sozinha!...
(Marcos estava morto, injustamente morto, apodrecendo debaixo da terra.)
Fechou os olhos novamente, voltando-se para a janela. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto moreno e cansado. O mesmo rosto que Marcos tantas vezes acariciara.
Sentiu o gosto das lágrimas nos seus lábios. Pensou nos lábios de Marcos... O seu beijo era doce e suave. Entrelaçou os seus braços sobre si mesma e desejou ardentemente que Marcos pudesse estar ali e abraçá-la. Precisava tanto do seu carinho, da segurança que ele sempre lhe passava!...
(Marcos estava morto. Seus lábios e seu corpo estavam, naquele instante, corroídos pelos vermes. Estaria descansando em paz?)
uma lágrima rolou pelo seu rosto e desceu em direção à calçada. E se alguém pudesse ver aquela lágrima dolorida e se compadecesse de sua dor, subindo até ao seu apartamento e lhe desse consolo e carinho?
Não, era loucura. Estava sozinha. Até Deus já havia ido embora: o céu estava cinzento, anunciando uma tempestade. Ventava agressivamente, despenteando os seus cabelos castanhos e cacheados..
Talvez aquele fosse algum sinal. Sim, um sinal! Sempre chovia quando alguém morria. Fora assim com Marcos e não seria diferente agora. Deus estava anunciando mais uma morte para os próximos minutos: era Cássia quem iria morrer.
Abriu os olhos e olhou para baixo. As miniaturas continuavam movendo indiferentes ao que ela sentia. Haveria alguém lá embaixo sentindo o que ela sentia naquele momento? Era como um peso enorme sobre si. Era como se tivesse envelhecido séculos. Mas ainda tinha vinte e um anos.
– É só uma crise da adolescência – dizia-lhe a sua mãe asperamente sempre que Cássia tentava se abrir para ela. – É normal na sua idade.
Na verdade, ela usava essas palavras para fugir de suas responsabilidades de mãe. Como dialogar se a verdade parecia sempre incomodá-la? Sua mãe sempre fechava os olhos para tudo e preferia acreditar que Cássia era ainda aquela garotinha inocente e tímida de sete anos de idade. Era deprimente, mas era a verdade. Sua mãe nem mesmo sabia que Cássia não era mais virgem.
Ninguém se importava com o que Cássia estava sentindo. Estava sozinha, completamente perdida. E o mundo continuava lá for. No seu quarto nada existia. Tudo era como um quadro mal pintado, borrado. Era assim a sua vida, sem cores e sem alegria.
– Você precisa acreditar em você, minha querida – dizia-lhe todos os dias Marcos com um sorriso constante no rosto branco e liso, como de uma criança.
Cássia assustou-se quando se deparou com aquele instante diante da janela, pronta a dar um fim a toda sua angústia e morrer para sempre. Tentou lembrar-se de sua vida até aquele dia fatídico e no porquê de chegar àquele ponto.
Deu um sorriso amarelo e desanimado, e pôs-se a pensar...

Meus romances manuscritos


Tenho dois romances manuscritos. O primeiro chama-se Todos os Corações Batem Iguais, que escrevi de 2001 ou 2002 se não me engano. O segundo chama-se Lembranças de Cássia, que escrevi em 2004.

Aos poucos vou digitando as minhas obras – uma pretensão minha é enviar, num futuro distante (ou nem tao distante assim), uma cópia digital para e-mails de diversas editoras (principalmente aquelas que dão chance para escritores “amadores” como eu) e ter finalmente um livro meu publicado.

É apenas um sonho...

Bem, estou digitando o segundo, Lembranças de Cássia, pois o primeiro tem muitas páginas e vai me tomar muito mais tempo. Conforme eu for digitando vou postando aqui os capítulos para quem quiser ler.

Se alguém gostar (ou não) pode comentar à vontade.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Novo ano velho ou novo pensamento?


Parece pessimismo, mas não é. Para mim este é só mais um ano.

Nunca entendi muito bem a euforia das pessoas a cada virada de ano, as superstições, as previsões, a idéia de que é preciso vestir-se de branco para começar bem o ano, promessas, simpatias, mesa farta, champanhe, enfim, tudo para que o ano que chega possa trazer sorte e felicidade.

Mas não acredito que uma simples mudança no calendário, um novo ano faça com que sejamos mais felizes e realizados.

Na verdade, o que precisamos mudar não é o calendário, mas sim a consciência, a atitude, o modo de ver as coisas. Mudar aparências é muito fácil. Mudar ou renovar pensamentos (ou mesmo mantê-los com convicção) é o grande desafio.


E isso pode acontecer a qualquer momento: hoje, amanhã, mês que vem ou no penúltimo dia do ano. Não precisamos esperar o próximo ano e nos enganarmos mentalizando que seremos diferentes, que o mundo será melhor, que a vida será boa, que a virada de ano trará vibrações positivas.

Eu posso melhorar como ser humano hoje mesmo. Posso realizar sonhos, melhorar o ambiente onde eu vivo, fazer tudo o que deixei acumulado, fazer aquela visita ou escrever aquela carta a tanto prometida neste exato momento, ser feliz agora. Depende da minha vontade e das oportunidades que eu aproveitar pelo caminho.

Esperar o próximo ano para tentar ser melhor parece comodismo demais, passividade demais. O melhor mesmo é comemorarmos sempre que surgir em nossa vida uma nova oportunidade, um novo acontecimento, um novo pensamento que poderá mudar ou melhorar algo em nós. Enfim, sempre que percebermos que o nosso destino e a nossa felicidade estão em nossas mãos. Caso contrário estaremos sempre fadados a esperar a vida passar quando chegar um novo mesmo ano e nada nos acontecerá de novo.

Façamos, portanto, a escolha crucial: queremos um novo ano velho que deixe tudo na mesmice e na acomodação ou um novo pensamento que nos traga mudanças?