segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Lembranças de Cássia - Capítulo II


II

Cássia não se lembrava muito bem de quando se dera conta de que estava viva.
Talvez tivesse sido aos sete anos de idade, na festa do seu aniversário. Era uma tarde belíssima, que Cássia nunca mais iria esquecer. A casa estava toda colorida com todos aqueles balões, com todas aquelas pessoas (muitas delas Cássia nunca vira antes), com todas as crianças da sua rua que não paravam de correr, entrando e saindo frenéticas, enlouquecidas.
Olhou-se no espelho que se encontrava num canto da sala: usava fitas vermelhas nos cabelos e, no corpo, um vestidinho azul com florezinhas brancas. Parecia-se muito com as suas bonecas queridas.
Sorriu para si mesma, satisfeita com o que via.
– Cássia! Cássia!
A menina teve um sobressalto e se virou. Deparou-se com Raquel, sua amiguinha, que corria ao seu encontro esbaforida.
– Procurei você por toda parte! Vamos lá pra fora brincar!
– Vamos!
Deram-se as mãos e saíram pela porta da sala, encontrando-se com outras crianças que brincavam com uma bola de borracha e gritavam num dialeto que só elas poderiam compreender. Adultos não entendiam aquela linguagem exótica e infantil.
Cássia nunca poderia se esquecer da imagem de sua amiga Raquel aos sete anos de idade: era loura, e seus cabelos lisos e compridos eram admirados e invejados por todas as crianças. Tinha um rosto angelical; seus enormes olhos verdes despertavam a atenção de quem a conhecia no bairro e o orgulho de seus pais. Como não bastassem todas as suas qualidades físicas, Raquel tinha um cérebro privilegiado para a sua idade: sabia ler e escrever muito bem, fazia contas de matemática com destreza não falava errado, como acontecia normalmente com crianças da sua idade. Todos comentavam que ali se encontrava uma criança superdotada que teria um grande futuro.
Raquel parecia ser a líder daquele grupinho de crianças: era ela quem escolhia, inventava e coordenava as brincadeiras diárias com autoridade. Falava firme com se fosse uma adulta.
Cássia alegrou-se por ver Lucas e Carla no meio de toda aquela bagunça lúdica. Eram eles seus grandes amiguinhos de brincadeiras diárias naquela rua em que morava desde quando nascera.
Lucas sempre lhe parecera uma criança triste, distante. Mesmo quando brincava descontraído, Cássia sentia-o diferente, como se fosse um estrangeiro recém-chegado a um lugar em que nunca estivera antes. Além de tudo isso, sofria com algumas crianças perversas que e aproveitavam de sua ingenuidade: roubavam-lhe seu tênis e seus brinquedos novos, trocando por outros já bem usados. Sem falar nos inúmeros apelidos que lhe inventavam, sempre relacionados à sua aparência: era muito franzino e branco, além de ter os cabelos ruivos e lisos até aos ombros. Por isso ganhava apelidos como menininha, palito de fósforo, Emília, tomatinho, ratinho branco, entre outros. Por ser uma criança muito sensível, Lucas sempre chorava, o que aumentava ainda mais o escárnio das outras crianças.
Já Carla era uma criança extrovertida e hiperativa. Estava sempre sorrindo e brincando, parecia nunca se cansar da vida que se lhe abria as portas com prazer. Cada descoberta que fazia deixava-a extasiada, como na primeira vez em que fora à praia com seus pais. Era tão perfeita aquela sensação de infinito que só o mar tinha! O céu azul e ensolarado parecia ser uma continuação da praia. Carla, então, pensava nos anjos: eles deveriam estar no céu divertindo-se muito, assim como toda aquela gente na praia que parecia ser muito feliz.
Carla, ao contrário de Lucas, nunca se importava com os apelidos que aquelas mesmas crianças perversas também lhe colocavam apenas por ser negra: carvãozinho, sombra, manchinha negra...
Era engraçado para Cássia pensar que já amava seus amigos desde aquela época, desde aquela primeira vez em que se dera conta de que estava viva.
Mas faltava alguém. No meio da balburdia das crianças, Cássia procurava um menino. Onde estaria Marcos? Quando já pensava em perguntar à Raquel (que sempre sabia de todas as coisas) onde Marcos se encontrava, eis que ele lhe apareceu como numa visão, sorrindo no meio daquelas crianças com a bola nas mãos. Ele era mais alto do que as outras crianças, apesar de ter sete anos como a maioria delas. Era um menino encantador: todos já comentavam que seria um belo rapaz quando crescesse.
Podia parecer estranho, mas Cássia o amava! Amava-o de uma forma diferente ao amor que sentia por Raquel, Lucas e Carla. Era ainda muito nova para saber o que era aquele amor que sentia por Marcos, mas sabia que era lhe era muito especial. E sabia que ele também sentia o mesmo por Cássia – aquele amor, aquele carinho inocente que só as crianças poderiam sentir.
Marcos viu sua amiga Cássia a certa distância, sorriu-lhe e acenou com a mão. Cássia ficou extremamente feliz e correu ao seu encontro. Ele jogou a bola para outra criança e abriu os braços. Abraçaram-se e ficaram por algum tempo assim, rindo alto. Como sempre fazia, Marcos levantou-a pela cintura e começou a girar enquanto Cássia ria, gritava e pedia ao seu amigo que parasse.
Quando finalmente parou e a colocou novamente no chão, Cássia sentiu tudo à sua volta girar, girar e girar. Era incrível aquela sensação de não ter controle sobre o seu próprio corpo por alguns segundos, parecendo levitar.
– Onde você estava, Marcos? – perguntou Cássia.
– Cheguei agora.
– Pensei que você não viria!
Marcos apenas riu e tirou um pedaço de papel do bolso de sua bermuda. Entregou à sua amiga e disse:
– Fiz pra você!
Era um cartão feito a mão, escrito “Feliz Aniversário!” com letra infantil e irregular, alem de haver um desenho de um coração (bem, pelo menos se parecia um coração) com o nome dos dois meninos dentro.
Cássia, feliz, beijou-o no rosto.
– Vamos ver as estrelas, Cássia? – perguntou Marcos ansioso.
– Vamos sim!
Os dois amigos deram-se as mãos e, indiferentes à gritaria das crianças que brincavam na calçada, foram correndo até à praça. Havia acabado de escurecer e as primeiras estrelas já piscavam no céu. Deitaram-se no gramado e lá ficaram com as mãos entrelaçadas por detrás da cabeça, admirando aquele céu perfeito. Cássia lembrava-se bem: fora Marcos quem lhe despertara aquela paixão pelas estrelas.
Havia uma estrela no céu que piscava mais que todas as outras; era enorme.
– Veja, Cássia! Uma estrela cadente!
– Ela é tao bonita! Por que ela é assim?
– Mamãe me disse que a gente pode pedir qualquer coisa, que Deus ouve a gente! Essa estrela pertence aos nossos anjos da guarda.
– É mesmo?
– É sim! Vamos fazer um pedido. Feche os olhos e peça qualquer coisa!
Cássia obedeceu e fez o seu pedido no pensamento: pediu a Deus que sempre deixasse Marcos ao seu lado. Sim, queria Marcos para sempre!
– Não fale pra ninguém o que você pediu. Se alguém souber, Deus não vai atender o seu pedido.
– Está bem, Marcos.
Seguraram a mão um do outro e continuaram admirando as estrelas em silêncio.


Cássia, na janela do seu quarto, ao pensar naquele dia inesquecível, sentiu uma enorme tristeza a oprimir o seu coração. Por que tudo tinha que ter um fim?
Como pôde acreditar numa estrela cadente ridícula que pertencia aos anjos e que Deus poderia atender a qualquer pedido que fizessem a essa mesma estrela? Era ridículo, ela sabia bem agora. Marcos estava morto e Deus nada fizera para impedir que isso acontecesse.
Sentiu novamente vontade de chorar e pediu a Deus que a fizesse ter novamente sete anos de idade.
Ouviu as trovoadas e teve certeza de que Deus lhe dizia não. Não! Não! Não!
Estava completamente sozinha. Sim, sozinha e abandonada. Olhou para o céu e, em vez das estrelas da sua infância, deparou-se com nuvens pesadas e cinzentas.
A chuva começou a cair, primeiro leve, depois cada vez mais forte, pesada, ensurdecedora. Trovoadas se multiplicavam.
Aos poucos escurecia. Cássia sentia-se como naquela noite (tão distante!) em que a luz acabara e a fizera chorar de medo...

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