sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Lembranças de Cássia - Capítulo I


I

De onde ela estava tudo parecia muito menor.
Sim, era uma sensação única e inexplicável sentir-se maior que o mundo. Era como se ela fosse, naquele instante, o próprio Deus.
E, por um segundo de lucidez, pôde lembrar quem era de fato: era apenas Cássia, debruçada à janela do seu apartamento. Uma anônima.
Sentiu-se envergonhada. E se Deus estivesse rindo dela, da sua tola pretensão, do seu desejo de ser eterna, de ser alguém que na verdade nunca poderia ser?
Mas, na verdade, o que ela queria ser?
Cássia não sabia ao certo. Mas de uma coisa ela tinha absoluta certeza: não queria ser quem era, não queria carregar aquele peso insuportável que era a sua vida.
A sua vida medíocre.
Já estava há duas horas ali sem se decidir. E ela sabia bem o que deveria fazer. Seria simples: precisava apenas erguer-se na janela e se jogar. Seria muito simples. Eram sete andares. Não haveria erro. Não ficaria paralítica ou coisa parecida. Seria uma morte instantânea.
Mas por que se demorava tanto então? Já não estava decidida? Não havia chegado àquela conclusão após noites e noites em claro, numa profunda reflexão?
“Pule, vamos! Acabe logo com isso!”, pensava Cássia, instigando-se determinada. “Você não sentirá nada”.
Mas será que não sentiria mesmo? Como seria o momento da queda? E se se arrependesse segundos após a queda? Deus lhe daria a chance de voltar atrás e desistir daquela loucura?
Cássia tinha certeza de que não. Daí a sua angústia desesperada.
E se descobrisse que poderia voar como aquele pardal que acabara de pousar em sua janela?
Não, não. Ela sabia muito bem: pessoas não voavam. E ela já não era uma criança inocente a ponto de acreditar em tal possibilidade.
Fechou os olhos e, por um momento, tentou não pensarem nada. Mas era impossível. Era tolice fingir que aquilo não era real. O mundo era real. As pessoas e os carros em miniatura que passavam de um lado para o outro eram bem reais lá embaixo. Os pardais também pareciam reais.
Talvez só ela não fosse real.
Mas... Não tinha ela sentimentos? Não tinha ela o seu quarto, o seu mundo, os seus pais (apesar de pouco vê-los), os seus amigos verdadeiros, o seu passado, a sua vida?...
Não tinha ela Marcos? Não, não tinha mais... Ele estava morto. Morto. E tão jovem, meu Deus!... Tão jovem...
Cássia estava viva, mas era como se não estivesse. Sentia um vazio devastador e sombrio dentro de si. Seus sonhos estavam mortos (ou pelo menos adormecidos), sua vida deixara de fazer sentido havia muito tempo.
Abriu os olhos num sobressalto. Alguém estava falando alguma coisa por detrás de si. Mas não estava sozinha, como sempre, naquele maldito apartamento?
Virou-se, certa de que encontraria alguém. Marcos, talvez. (Marcos estava morto, ela havia se esquecido mais uma vez.)
Não havia ninguém no quarto.
Suspirou aliviada e lembrou-se: era apenas o disco dos Smashing Pumpkins que continuava tocando e ela nem se dera conta. Seus discos eram tão familiares que às vezes lhe pareciam velhos amigos que vinham fazer-lhe uma visita e conversar sobre a vida.
Sobre a vida...
(Raquel estava se prostituindo. Lucas internara-se novamente numa clínica de recuperação para dependentes químicos. Carla fugira de casa. Antônio suicidar-se.)
– Oh, meu Deus! – desesperou-se Cássia. – estou tao sozinha!...
(Marcos estava morto, injustamente morto, apodrecendo debaixo da terra.)
Fechou os olhos novamente, voltando-se para a janela. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto moreno e cansado. O mesmo rosto que Marcos tantas vezes acariciara.
Sentiu o gosto das lágrimas nos seus lábios. Pensou nos lábios de Marcos... O seu beijo era doce e suave. Entrelaçou os seus braços sobre si mesma e desejou ardentemente que Marcos pudesse estar ali e abraçá-la. Precisava tanto do seu carinho, da segurança que ele sempre lhe passava!...
(Marcos estava morto. Seus lábios e seu corpo estavam, naquele instante, corroídos pelos vermes. Estaria descansando em paz?)
uma lágrima rolou pelo seu rosto e desceu em direção à calçada. E se alguém pudesse ver aquela lágrima dolorida e se compadecesse de sua dor, subindo até ao seu apartamento e lhe desse consolo e carinho?
Não, era loucura. Estava sozinha. Até Deus já havia ido embora: o céu estava cinzento, anunciando uma tempestade. Ventava agressivamente, despenteando os seus cabelos castanhos e cacheados..
Talvez aquele fosse algum sinal. Sim, um sinal! Sempre chovia quando alguém morria. Fora assim com Marcos e não seria diferente agora. Deus estava anunciando mais uma morte para os próximos minutos: era Cássia quem iria morrer.
Abriu os olhos e olhou para baixo. As miniaturas continuavam movendo indiferentes ao que ela sentia. Haveria alguém lá embaixo sentindo o que ela sentia naquele momento? Era como um peso enorme sobre si. Era como se tivesse envelhecido séculos. Mas ainda tinha vinte e um anos.
– É só uma crise da adolescência – dizia-lhe a sua mãe asperamente sempre que Cássia tentava se abrir para ela. – É normal na sua idade.
Na verdade, ela usava essas palavras para fugir de suas responsabilidades de mãe. Como dialogar se a verdade parecia sempre incomodá-la? Sua mãe sempre fechava os olhos para tudo e preferia acreditar que Cássia era ainda aquela garotinha inocente e tímida de sete anos de idade. Era deprimente, mas era a verdade. Sua mãe nem mesmo sabia que Cássia não era mais virgem.
Ninguém se importava com o que Cássia estava sentindo. Estava sozinha, completamente perdida. E o mundo continuava lá for. No seu quarto nada existia. Tudo era como um quadro mal pintado, borrado. Era assim a sua vida, sem cores e sem alegria.
– Você precisa acreditar em você, minha querida – dizia-lhe todos os dias Marcos com um sorriso constante no rosto branco e liso, como de uma criança.
Cássia assustou-se quando se deparou com aquele instante diante da janela, pronta a dar um fim a toda sua angústia e morrer para sempre. Tentou lembrar-se de sua vida até aquele dia fatídico e no porquê de chegar àquele ponto.
Deu um sorriso amarelo e desanimado, e pôs-se a pensar...

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