quinta-feira, 14 de julho de 2011

PROCISSÃO DOS MORTOS-VIVOS
Um morto passava meio-morto num catre
na rua principal daquela cidade.
A multidão de curiosos acotovelava-se:
"Quem era o pobre-diabo?"
"Era jovem?"
"Tinha amigos?"
"Família? Irmãos, pais, mulher, filhos?..."
"Eu acho que o conhecia..."
"Trabalhava numa repartição pública."

Boatos, fatos, conversas e desconversas.
Ele era só mais um motivo,
um pretexto podre e decadente para atiçar a curiosidade
dos ávidos por mortes e tragédias cotidianas.
"Era só."
"Tentou o suicídio."
"A mulher o traiu."
"Endividou-se com jogatina."
"Engravidou a irmã."
"Era pobre, mas honesto."
"Morava num barraco do outro lado da rua."

O morto não podia ver os rostos
e a tudo ouvia, mas nada podia dizer,
de tantas injúrias e mentiras a seu respeito
nunca poderia se defender.

"Para onde estou indo?"
"Tarsila, onde você está?"
"Cuide das crianças!"
"Pague a fatura atrasada do cartão de crédito
que se encontra na minha gaveta."
"Me perdoe, por favor!"

A vida começa e se dissolve
entre uma noite de sono e o acordar-se novamente no útero,
desta vez repleto de vidros transparentes, consciência e lembranças.
"Sou a novidade, não pelo meu nascimento
mas pela minha hipotética morte."

O sol a pino.
Dores de cabeça intermináveis.
formigamento nos lábios secos.
"Água, pelo amor de Deus! Água!"

Ninguém o ouve.
Ele grita desesperado.

Está aprisionado no seu próprio corpo.
Ninguém nunca o ouvirá.
Nunca

Os boatos, as vozes, os zumbidos se multiplicam.
Corja miserável de curiosos mortos-vivos (ou seriam vivos-mortos?)
e urubus de plantão com um falso ar de pena e compaixão,
mas regozijando no seu íntimo sujo e fétido.

Ponto final.
Uma lágrima lhe escorre pelo rosto paralisado.
Sente seu corpo descer.
Descendo... cada vez mais.
Um baque surdo.
Está morto... mas...
Por que se sente tão vivo?
Por que a maldita cabeça funcionando?
Por que tantas perguntas, tantas angústias, tantos medos?

"Não, não, não... Isto não é um sonho!"

Escuro.
Vazio lá fora,
vazio dentro de si,
vazio, o mundo.

"Frio, sinto frio..."

Um abraço,
uma palavra sincera,
uma mão carinhosa,
um sorriso,
um Deus,
qualquer coisa.

Tudo acabado.
Tudo esquecido.
Ocaso, termo, terra fria, escuro, fim...

Morto
num estado mórbido de catalepsia.

Um comentário:

Anônimo disse...

Esta me reportou a alguns escritores portugueses deste e de outro século como Antonio Boto, Albino Forjaz... Há dor, desalento, crítica mas, sobretudo, um certo cinismo. Mas, trata-se - não há dúvida - de um Paulo Avila. Que bom! Gostei muito!